o primeiro passo

A cultura, e a fé, se comparadas, são como um rio. Não importa onde nascem; se fluírem, sempre irão irrigar algo pelo caminho.

num tempo hipotético de uma geração que acreditava na força do amor, eles se conheceram, num curso de verão, num espaço de cultura e questionamentos. A princípio, eram apenas duas pessoas entre tantas outras que haviam se inscrito naquele evento para trocar experiências sobre cuidados da vida. O curso, que acontecia no prédio de uma universidade, era o local ideal transformado em centro cultural, com uma aura acolhedora. As paredes carregavam pinturas de artistas locais, e o jardim era um convite constante ao descanso e à contemplação.

Mariana era uma professora aposentada, mas que jamais deixara de ensinar. Tinha o hábito de colecionar livros de todos os gêneros e dizia que as histórias eram como mapas para quem se sentia perdido. Já Flávio, um engenheiro que sempre nutrira uma paixão silenciosa por literatura e filosofia, via no curso uma oportunidade de encontrar algo que ele mesmo não sabia nomear.

Na primeira semana do curso, um workshop prático reuniu os participantes em pequenos grupos. Mariana e Flávio foram colocados juntos e receberam a tarefa de criar uma proposta para promover o “bem viver” em comunidades vulneráveis. Foi ali, entre risos e debates apaixonados, que a conexão entre os dois começou a se formar. Ambos tinham experiências distintas, mas complementares, e compartilhavam uma crença profunda no poder transformador da cultura.

— A cultura, e a fé, se comparadas, são como um rio ~ disse Mariana durante a apresentação do grupo. — Não importa onde nascem; se fluírem, sempre irão irrigar algo pelo caminho.

Flávio, que tinha o hábito de registrar ideias em um pequeno caderno de couro, rabiscou essa frase imediatamente. Para ele, havia algo de profundamente poético na imagem que Mariana evocara.

Quando o curso terminou, ambos sabiam que o aprendizado não podia parar ali. Decidiram unir forças e criar um projeto que levasse o bem viver às periferias da cidade, onde o acesso à cultura ainda era um luxo inalcançável para muitos. A ideia era simples, mas ambiciosa: construir espaços itinerantes de arte e educação, utilizando uma biblioteca móvel como ponto de partida. Flávio ficaria responsável pela logística e estruturação do projeto, enquanto Mariana traria sua expertise pedagógica e um olhar sensível para os conteúdos que seriam oferecidos.

Com a ajuda de amigos e voluntários, o primeiro protótipo da biblioteca móvel tomou forma em menos de seis meses. Um velho ônibus escolar foi transformado em um espaço multifuncional, com prateleiras repletas de livros, mesas dobráveis para oficinas e uma pequena área equipada para exibição de filmes e palestras. O ônibus, que recebeu o nome de “Riacho de Histórias” em homenagem à analogia de Mariana, tornou-se um símbolo de esperança.

O impacto foi imediato. No primeiro mês de atividade, o ônibus visitou três bairros periféricos e atendeu mais de mil pessoas. Crianças que nunca tinham tido acesso a livros agora mergulhavam em mundos de fantasia, enquanto adultos descobriam novas formas de expressão por meio das oficinas de escrita criativa e artesanato. O projeto também revelou talentos escondidos: em um criativa e artesanato. O projeto também revelou talentos escondidos: em um

Para chegar ao cume da montanha, durante a escalada, não olhe para o topo da montanha, olhe para os seus pés e siga um passo por vez.

Não é nada sobre chegar ao cume de uma montanha.
É compreender o que a escalada lhe ensinou.

Swami Paatra Shankara*

dos bairros, uma jovem chamada Ana Luísa apresentou seus poemas em uma das rodas de leitura e, em pouco tempo, tornou-se uma referência cultural na comunidade.

Para Mariana e Flávio, cada dia trazia novos desafios, mas também reafirmava o poder da cultura como uma ferramenta de transformação. Eles aprenderam que, mais do que distribuir livros ou oferecer atividades, o verdadeiro impacto residia em criar espaços de encontro e troca, onde as pessoas podiam se reconectar consigo mesmas e umas com as outras.

Mas, no fundo, ambos sabiam que havia uma pergunta que os acompanhava constantemente: “Que futuro abraçar?” Em meio às vitórias e às dificuldades, era inevitável refletir sobre o que estava sendo construído. Seria o projeto uma solução duradoura ou apenas um suspiro de esperança em um mundo cheio de desigualdades? Haveria um ponto em que a caminhada se tornaria mais sobre resistir do que criar?

Um momento marcante aconteceu em uma tarde chuvosa. O ônibus estacionou em um terreno de terra batida, e a equipe temeu que o mau tempo afastasse os participantes. Mas, para surpresa de todos, dezenas de pessoas apareceram, protegidas por guarda-chuvas improvisados ou simplesmente encarando a chuva de peito aberto. Uma delas era dona Malvina, uma mulher de 72 anos que sempre fora apaixonada por pintura, mas nunca tivera a chance de aprender técnicas formais. Naquele dia, sob o som das gotas de chuva, ela participou de sua primeira oficina de aquarela e chorou ao finalizar sua obra.

— Isso aqui é muito mais do que arte ~ disse ela. — É uma nova vida.

O projeto continuou a crescer, ganhando visibilidade e atraindo parcerias. Uma grande editora decidiu doar milhares de livros, e artistas renomados se voluntariaram para conduzir oficinas e palestras. Mas, apesar do sucesso, Mariana e Flávio mantinham os pés no chão e o coração no propósito inicial: levar o bem viver àqueles que mais precisavam.

Em uma noite de celebração pelo aniversário de dois anos do projeto, Mariana e Flávio refletiram sobre o caminho percorrido. Sentados no jardim do casarão da universidade onde tudo começara, brindaram ao futuro.

— Sabe, Flávio ~ disse Mariana. — Talvez a gente não mude o mundo inteiro, mas, para cada pessoa que a gente alcança, é como se estivéssemos acendendo uma nova chama.

Flávio sorriu e, mais uma vez, pegou seu caderno de couro para registrar aquela frase. O futuro ainda era incerto, mas eles sabiam que estavam construindo algo que ultrapassava as barreiras do tempo: um legado de humanização e esperança, um caminho que se refazia a cada passo, em busca de um cume que nunca deixava de questionar o que significava ser alcançado.

*
Swami Paatra Shankara é uma frase que significa “Saber que você significa alguma coisa para alguém é a melhor coisa do mundo”. 

 
Shânkara foi um mestre espiritual, teólogo, monge errante e metafísico indiano. Ele foi o principal formulador da doutrina do Advaita Vedânta, ou Vedânta não-dualista. Shânkara é considerado uma das almas mais excelsas que já encarnaram na Terra, e é frequentemente comparado a outros grandes mestres espirituais, como Jesus, Moisés e Buda. 

⁠qual o valor de lutar pela vida?

no leito do hospital, o tempo parecia flutuar, suspenso entre as paredes brancas e o som monótono dos aparelhos. DonaMãe, também conhecida como Zina, como eu a chamo carinhosamente estava ali, lutando contra problemas renais e uma teimosa infecção urinária. é uma guerreira, sempre foi. e, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, encontra uma maneira de expressar sua força: através das palavras.

ela falava, e como falava. as palavras saíam de sua boca incessantemente, até que a boca secasse. recusava-se a beber água, como se aquela fonte de vida fosse um capricho dispensável. mas bastava um sussurro carinhoso ao pé do ouvido, e ela cedia, aceitando a bebida com um sorriso resignado.

ontem, por volta das 16hs, em meio a uma dessas maratonas de falas, DonaMãe desviou o olhar para a colega de quarto, uma senhora em um estado de saúde delicado, cercada pelos filhos preocupados. com uma serenidade perturbadora, ela disse: "Ela quer morrer, e vocês deveriam fazer uma prece para que ela se encontre com Deus."V que se seguiu foi tão denso quanto a atmosfera do quarto. as palavras dela ecoaram, trazendo um desconforto palpável. tentei mudar de assunto, puxar Zina de volta para conversas mais leves, mas ela estava decidida. e, voltou a falar sobre fé, sobre o que Deus nos reserva, como se quisesse preparar a todos, inclusive a si mesma, para o inevitável.

essas palavras, embora duras, vinham de um lugar de profunda reflexão e talvez aceitação. DonaMãe sabia que o fim estava próximo, não apenas para sua colega de quarto, mas também, todos nós que tentamos saber qual é o valor de se lutar pela vida. havia uma sabedoria em seu discurso, um desejo de encontrar paz para aquelas pessoa e eu sentia. mas, dar sentido aos últimos momentos, parecia ser ir longe demais..

e então, a madrugada chegou. talvez não mais que uma hora da manhã, e dona Anna nos deixou. deixou um vazio imenso, quarto e as vozes silenciaram junto com ela, estava sua filha. deixou também uma lição valiosa sobre a fragilidade e a beleza da vida. cada conversa, cada recusa teimosa em beber água, cada prece sugerida, eram manifestações de DonaMãe e sua esperança de seu um amor maior.

no leito do hospital, entre palavras e silêncios, DonaMãe ensinou-nos que o valor da vida está nas pequenas coisas, nos gestos de carinho e nas reflexões profundas. não foram apenas palavras, foi uma compreensão serena da vida e da morte..

e assim, enquanto a memória de Anna permanece viva em nossos corações, continuamos a fazer nossas preces, buscando o consolo que Zina ela tão sabiamente sugeriu, buscando forças nas lembranças de sua presença amorosa para que logo, logo, ela volte à rodinha normal
26.jun.024

Luze Azevedo

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